As dimensões do profeta - Capítulo 2
Escrito por J Herculano Pires
A aceitação do monoteísmo por todo um povo, acorrida pela primeira vez na história, quando os hebreus, após a relutância inevitável, admitiram que o deus familiar de Abrão, Isaac e Jacó, era o Ser Supremo, assinala o advento do horizonte profético. Desse momento em diante, os médiuns antigos adquiriram uma nova dimensão, e por isso mesmo uma nova' qualidade. Não eram mais os instrumentos
submissos de espíritos dominadores, como o de Piton, a serpente délfica, possível representação alegórica de um antigo tirano, e não caíam mais nos transes inconscientes. Pelo contrário, instrumentos conscientes de um Deus universal, supremo, racional, passaram a falar como intérpretes e não como simples aparelhos de transmissão de mensagens vocais. A nova qualidade que adquiriram foi a
dignidade individual. Fácil perceber-se a diferença existente entre a pitonisa, que caía em transe e proferia palavras desconexas, e o profeta hebreu, cheio de dignidade pessoal, de consciência da sua missão divina, que não temia apostrofar os poderosos do tempo.
Vemos que a individualização social, produzida pelo horizonte civilizado, atinge sua culminância no horizonte profético, para redundar numa forma nova: a individualização mediúnica. O profeta é um médium que rompeu o gregarismo psíquico, arvorou-se em senhor de si mesmo, passou a responder pessoalmente pelos seus pronunciamentos mediúnicos. Acima dele, paira a razão suprema, o Deus único e universal, com o qual ele pode confabular através da mediunidade. E nele mesmo brilha a razão humana, a inteligência individualizada, senhora de si, capaz de julgar se a si própria e julgar o mundo e os homens.
A individualização da ideia de Deus, o conceito de um Ser Supremo, decorre da própria individualização humana. O homem, desprendendo-se do rebanho, destacando-se da massa gregária, torna-se “egrégio”, importante, e não pode mais admitir a sua submissão a deuses gregários. Tem de eleger um deus “egrégio”, um deus que, como ele, supere o rebanho olímpico. Este é o fato que justifica o engano materialista, que inspirou um belo soneto a Antero de Quental, segundo o qual não foi Deus quem fez o homem à sua imagem e semelhança, mas este quem fez Aquele. Realmente, o monoteísmo é uma projeção do homem ao infinito, como queria o poeta. Daí o antropomorfismo bíblico da concepção de Deus. Mas esse antropomorfismo não nega a existência do Ser Supremo. Antes, como afirmava Descartes, é a prova mais profunda e universal dessa existência, a marca indelével do Criador na criatura. O Deus Único, feito à imagem e semelhança do Homem Único, do indivíduo que se desprendeu da turba, deve possuir os atributos que caracterizam esse novo homem. Assim como os deuses múltiplos do politeísmo, formando o rebanho olímpico, reproduzem os vícios e as paixões do homem múltiplo do gregarismo, assim também o Deus Único reproduz a dignidade pessoal do homem “egrégio”, que se destacou da grei. Acentuam-se então os atributos éticos de Deus. A dignidade humana do indivíduo social projeta-se no infinito, expandindo-se na Suprema Dignidade. Nada mais justo, portanto, que a relação inversa também se verifique. O Deus Único se projeta no homem individual, estabelecendo-se a relação direta da pessoa Divina com a pessoa humana.
O profeta é o elo entre a terra e o céu. A individualização social produziu a individualização mediúnica, e esta, por sua vez, produz a individualização espiritual, através do aprimoramento dos atributos éticos do profeta. A simbiose metafísica resulta em benefícios recíprocos. O pensamento materialista, mesmo o dialético, não alcança a grandeza dessa relação dialética, semelhante a do homem que, pelo trabalho, modifica a natureza e é por esta modificado. O pensamento espírita, consegue abranger as dimensões do fato, mostrando que, por traz da aparência, há uma realidade profunda. Na verdade, a projeção do homem ao infinito não é mais do que uma aproximação humana da realidade divina. A projeção psíquica do monoteísmo é simplesmente uma resposta do indivíduo humano ao apelo do Indivíduo Divino, que através dos séculos e dos milênios esperou a compreensão do indivíduo gregário.
Podemos aplicar ao caso os versos de Rainer Maria Rilke: “Mesmo que não o queiramos, Deus nos faz amadurecer”. O amadurecimento social nos torna capazes de abranger maiores dimensões da ideia de Deus, pela maior amplitude mental que nos proporciona. O profeta se apresenta, assim, como um indivíduo em três dimensões. Na primeira, temos o indivíduo social; na segunda, o indivíduo mediúnico; na terceira, o indivíduo espiritual. Por esta terceira dimensão, o profeta revela uma individualização mais poderosa que a do indivíduo grego, que apesar de libertar-se do gregarismo terreno, continuou politeísta, e que a do indivíduo romano, que se fechou no casulo social da cidadania. O profeta hebreu, que tem a sua réplica nos sábios, artistas e místicos dos demais povos da época, rompe a estreiteza das relações terrenas e estabelece aquela forma transcendente de relação que, segundo uma feliz expressão de Denis de Rougemont, o toma “mais livre que o indivíduo grego, mais entrosado que o cidadão romano, mais liberto pela própria fé que o entrosa”.
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