Individualização espiritual


Escrito por J Herculano Pires

Para bem compreendermos o problema da individualização espiritual, analisemos rapidamente as formas anteriores: a biológica e a social. O homem se destaca, individualmente, da massa animal da espécie, no momento em que se reconhece a si mesmo como unidade que se opõe ao múltiplo. Seu corpo é um, em conflito com muitos corpos, que o cercam por todos os lados. O gregarismo biológico é superado pelo narcisismo, e esse narcisismo se repete em cada indivíduo, no processo do desenvolvimento biológico individual, como ensina a psicologia da infância e da adolescência. Não obstante, a individualização biológica é apenas o  primeiro passo da individualização social, e por isso mesmo não pode ser tomada como uma dimensão  espiritual. No momento em que Narciso se debruça sobre o espelho das águas, e aprende a se contemplar, descobre também que merece a admiração dos outros. O vínculo social se estabelece. A fórmula de Sartre, sobre as três dimensões ontológicas do corpo, esclarece precisamente o que estamos estudando. Podemos resumi-­la assim: “Existo no meu corpo, é esta a sua primeira dimensão; meu corpo é utilizado e conhecido por  outro, e esta é a sua segunda dimensão; eu existo por mim como conhecido por outro a título de corpo, e esta é a terceira dimensão ontológica do meu corpo”. 

Ao reconhecer a existência do seu corpo, na massa da espécie, o homem já se projeta fora de si mesmo, na relação social. Mas, com isso, não se devolve à espécie. Pelo contrário, super­a, iniciando a facticidade do social, entrando para uma nova forma de gregarismo, de ordem superior, que é o gregarismo psíquico. A terceira dimensão ontológica do corpo é o indivíduo social, que no plano do espírito  representa apenas a primeira dimensão. O indivíduo social é uma transcendência imediata do indivíduo biológico, segundo o demonstra o próprio Sartre. E reportando­nos à definição, já citada, de Simone de Beauvoir, sobre a humanidade, podemos dizer que esta deixa de ser uma espécie, para se transformar num devir, no momento exato em que Narciso se olha no espelho das águas. Pisando no limiar do espírito, com a individualização social, o homem avança na espiritualidade através
do lento e vasto processo da individualização mediúnica, que estudamos ao tratar dos horizontes tribal, agrícola e civilizado. Neste último é que surge o conflito entre o social e o mediúnico, porque o espiritual se impõe, a cultura subjetiva se define e se destaca da objetiva. Os deuses materiais do politeísmo se reúnem numa forma única e superior, a do monoteísmo, que é abstrata, espiritual.

A utopia leva Platão a sonhar com a República, Francis Bacon com a Nova Atlântida, Karl Marx com a sociedade sem classes. Mas depois de Platão e antes dos outros, Jesus também pregara o Reino de Deus, para confirmar a natureza espiritual do homem, que transcende a material. E Kardec, mais tarde, daria sentido espiritual à lei da evolução, que o século dezoito descobriu, para mostrar que o Reino de Deus é uma conquista progressiva, um avanço da humanidade, através do deserto ilusório 
dos bens materiais, na direção da Canaã espiritual. 

Ao atingir a individualização mediúnica, o profeta se põe em relação direta e pessoal com Deus. Dois indivíduos se defrontam: o divino e o humano. Os intermediários, quer sociais, quer espirituais, são afastados. O profeta não necessita mais dos sacerdotes, nem dos deuses. Abrão, por exemplo, é amigo de Deus e confabula com Ele. Despreza os deuses mesopotâmicos e os de todos os povos idólatras, porque elevou-­se acima do gregarismo psíquico e descobriu que a sua individualização não é apenas um processo terreno, pois corresponde a uma realidade espiritual, que é a individualização de Deus. Ninguém explicou melhor esse fato do que Descartes, ao descobrir, no fundo do cogito, no mais profundo de si mesmo, a ideia do Ser Supremo. De onde viria essa ideia, que não encontra apoio na realidade exterior, onde só encontramos os seres falíveis e imperfeitos da individualização social? Só poderia vir de uma realidade interior, e portanto espiritual.

O Ser Supremo não corresponde aos produtos objetivos da evolução, mas aos subjetivos. E como é ele o modelo único da espiritualidade, aquele ímã divino de que falava Aristóteles, que atrai o mundo para a sua perfeição absoluta, o indivíduo espiritual não pode dirigir­se senão a ele. Daí a energia e a firmeza, a intransigência com que os profetas hebreus rejeitavam a idolatria. O indivíduo espiritual, que neles se desenvolvia, recusava­se a aceitar a própria diluição nos cultos formais do politeísmo. Esses cultos constituem um perigo para a integridade espiritual do profeta. A afirmação de John Murphy em seu tratado, ORIGENS E HISTÓRIA DAS RELIGIÕES, ajuda­nos a compreender todo esse processo: “O homem é o produto da evolução, tanto no seu  corpo, quanto no seu  espírito”. Murphy acrescenta: “O ser  humano passou por graus sucessivos de evolução, e foi o seu espírito que o tornou especificamente humano”. 

As formas de individualização a que nos referimos oferecem a linha dessa evolução. Narciso levanta a cabeça do espelho das águas para contemplar o mundo com olhos sonhadores. A descoberta de si mesmo, de sua especificidade, de sua beleza própria, descortina-­lhe unia visão diferente das coisas dos seres. O corpo de argila que recebeu o sopro do Criador, segundo o imito bíblico, revelou um conteúdo espiritual, que supera a realidade imanente e leva o homem ao plano do  transcendente. A individualização espiritual é, portanto, o ápice do processo  evolutivo que se iniciou com a individualização biológica. Ao atingi­-la, o homem se iguala a Deus, e pode falar a Ele como de igual para igual. Não era assim que faziam os profetas? Ouviam a Deus, e Deus os ouvia. A criação do homem à imagem e
semelhança de Deus não é, portanto, uma simples alegoria, e não se refere ao plano 
material. O deus antropológico é apenas uma concepção aproximativa da realidade espiritual, que se converte no deu­s em ­forma de Israel ou dos místicos indianos.

Deus é amor, diz João, evangelista, e essa afirmação nos leva a um plano conceptual que paira muito acima do antropomorfismo religioso. Não obstante, devemos precaver­nos das ilusões. O deus conceptual é apenas um reflexo da realidade suprema. O indivíduo espiritual confabula com entidades superiores, certo  de falar com o próprio Deus, como ocorreu com Moisés no Sinai ou com Elias no Carmelo. A individualização espiritual é ainda uma fase da evolução, que se prolonga nos planos da espiritualidade, muito além das nossas possibilidades de concepção e imaginação. 

(Extraído do livro: O Espírito E O Tempo. Capítulo IV - Horizonte Profético: Mediunismo Bíblico - Individualização espiritual)

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